Loucura
Ontem vi a loucura a olhar para mim
com o rosto mais sério que posso imaginar.
Sentou-se na minha cama enquanto eu acordava,
plantou-se à porta e depois à janela,
e multiplicou-se no alento da casa.
Saí para me evadir da densa realidade
de um edifício com fundações de medo,
janelas opacas, portas transparentes,
paredes cimentadas com bichos venenosos,
telhados ruminantes a pastarem o céu.
A rua tremeu com o eco dos meus passos
e a loucura escorreu do voo dos pássaros.
A viscosidade empapou as cabeças dos homens,
foi sugada pelos olhos e pelos ouvidos,
modelou-se em túneis, que serpentearam
nos escombros das montanhas cerebrais.
Uma voz estridente e sem origem
picou o quebradiço da minha lucidez
que gretou como lama seca.
—Já ontem andaste por este caminho
o mesmo em toda a tua vida
coloca ondas nos teus olhos dispersos
e vê do alto nada é o que parece.
Abstraio-me da voz, olho a proximidade.
Um homem carrega um automóvel.
uma senhora bebe garrafas de vinho pelo ânus
— para que a embriaguez não tenha mau hálito.
Uma criança vira e revira os pais,
à procura do mundo.
As árvores da avenida reclamam animais de estimação
e um indivíduo andrógino é arrastado por uma trela,
gritando “sou eu quem controla!”.
Telemóveis chupam cérebros pelos olhos
dos corpos descabeçados que esbracejam
na excitação da irrealidade
onde enxames de gafanhotos pastam vacas
e defecam articulações de metano
em sementeiras de reflexos distorcidos
ondulando com lengalengas sem propósito.
Os risos são ecos de lugares remotos,
pairam como nuvens de abandono,
são fustigados por desperdícios voláteis,
esfarelam-se, caem e deslizam,
roçando os pés de animais sem rumo,
cujas sombras são fendas no êxtase
de fantoches delirantes, sem corpo e sem mundo.
A lucidez pisca apenas em fragmentos de memória,
que se dissolvem nas bocas famintas,
de infinitas tentações sem consistência,
descentradas nos prazeres inadiáveis
de um presente sem janelas nem paisagens,
que lambe a excitação do seu momento.
Uma criança ainda brinca na ponte,
sobre o rio voraz prestes a afogar
todo o casario dos homens que vagueiam…
Mas ninguém a protege pois ninguém a sente.
E o rio vai crescer, vai tornar-se viscoso,
vai fechar cada alma no seu próprio casulo!
A MULHER QUE QUERIA SER VELHA
Este texto tem, como muitas outras coisas boas da minha existência, origem na minha avó, que cuidou de mim enquanto fui criança. Quando nasci ela já era velha, não idosa, porque não gosto da palavra, era mesmo velha. Tinha iniciado as peripécias da vida antes do final do século XIX e aproximava-se dos setenta anos. Mas não arrastava o tempo, pairava sobre ele.
Chamava-se Aurora e, tal como o nome indica, era o começo da claridade, o despertar da luz, o início da viagem do sol pelo redondo do céu. Embora não fosse professora, ensinara a ler e a escrever muitas das pessoas da vizinhança. E contava histórias. Um dia contou-me uma que me entrou mais pelos olhos do que pelos ouvidos e foi diretamente dançar na minha imaginação.
Um homem, muito orgulhoso e rico, decidiu passar por um caminho onde estava um boneco de alcatrão. Podia facilmente contorná-lo, mas decidiu que tinha de ser o boneco a afastar-se para lhe dar passagem. Como este não o podia fazer, porque era peganhento e estava preso à terra, o homem zangou-se e agrediu-o para o afugentar. Porém, à medida que o espancava ia ficando cada vez mais preso na matéria viscosa: primeiro a mão direita, depois a esquerda, a seguir os pés… Ao perceber que não podia ganhar a luta tentou libertar-se, mas quanto mais o fazia mais preso ficava. Chegou o momento em que já ninguém conseguia distingui-lo do boneco.
Fiquei o resto do dia em que vi a história a pensar nela. De noite, continuei a ruminá-la nos sonhos.
Na manhã seguinte, o mundo estava diferente. Eu sabia que se odiasse muito as coisas podia transformar-me nelas. Por isso quando olhei para as nuvens, que antes me pareciam ameaçadoras, vi palácios e fadas.
Imaginei também que todas as mulheres do mundo queriam ser velhas, para ficarem como a minha avó. Depois percebi que ninguém queria ser velho por causa da proximidade da morte, mas tranquilizei-me, pois tive a certeza de que as pessoas estavam enganadas e de que a minha avó era imortal, como a Senhora dos Remédios, que vivia numa capela ali próxima e que já tinha dois mil anos. Permanecia sempre quieta, como um boneco, mas viva, porque era imortal.
De facto, escrevi este livro para encontrar uma pessoa com uma razão muito forte para desejar tornar-se mais velha. E tinha de ser uma mulher.